quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Bater de um «3 *

Voltei ao parque, descalça. Com vontade de receber sol e ver a relva, os olhos espalhados pela imensidão de verde.Fiquei com o livro fechado sobre o regaço e o leitor de música na mochila, a inspirar a felicidade das pessoas. Havia a avó super protectora a dizer aos netos que não podiam sair do jardim, os casais que namoravam, as pessoas que estavam só por estar, os que liam e os que tentavam ler, os que jogavam futebol, os que passavam, por fazer o parque parte do seu caminho.O casal com a criança de um ano que começava a conseguir pôr as pernas, uma à frente da outra, nos primeiros arremedos de passos. E caía na relva e voltava levantar-se e ria-se e voltava a tentar pôr os pés um à frente do outro. Os pais deleitavam-se com a menina que ria e levantava o vestido e se levantava do chão; disputava o casal o amor da filha, que sem saber, já era objecto de discórdia. Com visível amor, o pais queriam que a filha gostasse mais de um do que de outro; faziam esse ritual de auto-segurança sem darem bem conta do que estavam a fazer. E pensar que havia tanto amor. Porque a mãe luta pela criança com as mamadas, com a relação umbilical. O pai recupera agora o tempo perdido, disputa a filha com cócegas e mimos, com histórias de adormecer e um biberão de leite morno. Como a disputará com uma nota de vinte euros dada à socapa nas primeiras saídas nocturnas.Mas o casal é feliz na doce disputa do amor. O amor entre eles já não interessa, interessa sim o amor da filha, porque esse existirá enquanto a vida existir.Do parque não guardo só as memórias da tarde, as imagens que recolhi das pessoas, os movimentos e os gestos. Guardei também todos os outros parques em que estive, em que partilhei e dos quais agora me despeço. Não que agora tenha deixado de ir para os parques, agora despeço-me deles porque os encaro numa perspectiva diferente, muito diferente. Não sinto a mesma vontade de ir partilhar segredos e beijos: porque agora vou sozinha. E não é igual, não é mesmo nada igual.Mas a despedida não implica ausência, vou continuar a ler nos parques, a observar as pessoas.Porque se continua a partilhar a mesma ternura, o mesmo olhar ansioso de outro amasso, o mesmo segredo dito em voz muito baixa, quase imperceptível, o sussurro que se transformou em beijo. À distância de muitos quilómetros. À proximidade de um bater de coração.


[Á vida]

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